O vai e vem dos legumes // The coming and going of vegetables


    Dos primeiros parágrafos até chegar ao assunto do título, suponho que meu texto represente uma boa parte de pessoas que moram sozinhas e que não são muito chegadas à cozinha. Aquela parcela de seres humanos que lembra do fogão quando faz café e que o limpa quando os farelos oriundos do pão torradinho caem no forno.
    Logo, desconfio que, para os seres sem noção de cozinha, o início do isolamento tenha sido, no mínimo, esquisito e confuso como foi para mim. Eu simplesmente não tinha comida nem fazia ideia do que era uma logística de suprimentos para almoçar e jantar todos os dias em casa. Então no primeiro dia de teletrabalho, dezessete de março, fui a três estabelecimentos: o mercado comum para comprar produtos de limpeza e papel higiênico – os itens mais cobiçados, o hortifruti para as frutas e legumes frescos – os itens mais saudáveis - e a loja de comidas congeladas – os itens substanciais.
    Entretanto, o isolamento mostrou a necessidade de ficar em casa de verdade e, até essa pandemia, nunca havia feito compras de suprimentos pela internet. Parti para as aquisições nos sites dos mesmos estabelecimentos do parágrafo anterior e tive que lidar com a ansiedade de: receber as compras em dez longos dias do primeiro estabelecimento, rezar para escolherem bem minhas frutinhas e legumes no segundo e esperar as setenta e duas horas da entrega do terceiro. Aprendi a logística das esperas e fui fazendo compras calculando essas ansiedades. E datas de entrega, claro. Na falha de um dos meus cálculos, comi comida russa “Roscovo” e francesa “Caponate a le tune”. Um luxo.
    Dessa experiência, descobri que batata palha é um ótimo acompanhamento e sempre a incluía nos pedidos, pois passou a figurar no rol dos itens mais importantes. O cálculo entre a data do pedido e a da entrega versus estoque de comida mais itens de limpeza mais papel higiênico elevou o saquinho de batata palha para posições mais altas no ranking de necessidades.
    Ah, sim, eu cozinhava algumas coisas: arroz integral na panela elétrica (que, junto com um ovinho frito, virou a especialidade “Roscovo”), legumes no forno com azeite e ervas (a tal caponata que felizmente rendia boa quantidade e me salvava junto com a lata de atum tornando-se a “Caponate a le tune”) e sopa de legumes (que fiz num dia fresco no final de abril, padrão Rio de Janeiro: vinte e seis graus de dia e vinte e dois à noite).
    Sobre o teletrabalho, também acho que não vou contar muitas novidades. Meu computador travou e o wi-fi falhou algumas vezes. Suei para me adaptar ao novo modo de comunicação por vídeo com vários interlocutores ao mesmo tempo. Preciso dizer que tenho mais de cinquenta anos e que novas tecnologias não são exatamente algo que eu domine – ou goste. Mas isso foi tranquilo perto do item suprimentos. E, na hora marcada da reunião, eu me esforçava para estar com a aparência minimamente decente – cabelo preso, um pozinho para colorir a cara, um batonzinho e um sorrisinho de “tudo bem, vai passar” para disfarçar o “estou adorando estar em casa de chinelos”.
    No tempo livre, de dia pegava sol na varanda e fritava por uma horinha nesse outono carioca de vinte e oito graus, arrumava a casa, lavava a louça, achava alguma roupa sem botão para consertar ou algo quebrado para colar. De tarde, após o teletrabalho eu praticava yoga. E, à noite, alternava entre ler um livro, enviar e responder mensagens ou assistir um filme.
    Contudo, o que mais me preocupava não era minha comida, meu trabalho ou meu lazer e sim minha mãe de oitenta e seis anos, que mora sozinha. Não cogitei trazê-la para minha casa de sala e quarto por vários motivos e o mais contundente é que o computador ficou na sala, mesmo espaço da televisão – que, na casa dela, é ligada às seis da matina para acompanhar a missa e no final da tarde para ver o “Te peguei”, programa do João Kleber. Pela foto dá pra perceber o drama e a proximidade entre o computador e a televisão...
    Conversei muito com ela, expliquei a situação e falei mil vezes para ficar em casa, pois eu faria as compras e as levaria para ela. Resistência inicial. Acordo parcial. Nova rodada de tratativas, até ela se convencer que, não só ela deveria ficar em casa, como eu também. Logo, me botou para correr e comprou seus suprimentos do mercadinho próximo por telefone.
    Respirei aliviada até ela dizer que iria à consulta do cardiologista-geriatra, dado que era pior ficar preocupada por não ter acompanhamento de seu médico entre outros mil argumentos. Desisti de impedir para não ficar preocupada também – sim ela tem bons argumentos. Lá foi ela de táxi com o juramento de voltar do mesmo jeito que foi.
    Esperei-a voltar da consulta para me telefonar e contar como foi, mas, pelos meus cálculos, já estava demorando um bocado. Optei por não entrar em pânico, já imaginando que tinha voltado a pé para sassaricar na rua. Bingo!
- Mamãe, por que demorou tanto nessa consulta?
- Comi uma empadinha com mate na volta, ué.
- Você não tem juízo mesmo!
- Tomei café cedo e fui pro médico, estava com fome, ué.
- Você não poderia voltar direto para sua casa e comer algo?
- Eu passei na farmácia para comprar os remédios que ele receitou.
- Você entrou em outro lugar? Você se expôs na rua, na casa das empadas e na farmácia?
- Ué, tinha que comprar os remédios.
    A ida ao médico foi no início do isolamento e a loja das empadinhas ainda estava aberta. Entre brigar, ouvir esses e mais uma dúzia de argumentos, resmunguei que não deveria mais fazer isso para não se expor na rua, ao que a belezinha respondeu:
- A empadinha e a farmácia ficam na mesma calçada do consultório do médico, nem andei muito.
    Eu tive que rir e perguntar:
- Ah, quer dizer que o vírus escolheu apenas um lado da calçada para infectar as pessoas?
    Muitas risadas depois, o assunto foi encerrado e, para meu consolo, não saiu mais.
   Porém, fiquei intrigada com o que ela faria para passar o tempo, considerando que não podia ir às suas atividades semanais - Pilates e Coral – ou a qualquer outro lugar. A primeira parte do tempo, eu já comentei que ela gastava com as orações assistindo missa pela televisão. À noite, ela também assistia algum programa de comédia ou de música. Uma parcela de tempo considerável de seu dia era usada lendo as mensagens que recebia via WhatsApp dos grupos das atividades semanais, do grupo da igreja, do grupo das professoras aposentadas, das velhinhas que fazem excursão, do grupo das poucas ex-alunas que restaram do tempo do colégio, da família, de amigos diversos e sei lá mais de quem minha mãe recebia tanta mensagem. E, mais uma quantidade de tempo era gasta repassando essas mensagens para mim, para o grupo da família, para amigos diversos e assim por diante. Uma verdadeira máfia de velhinhas repassadoras de mensagens.
    Não vou descrever o tipo de mensagens que mamãe recebia e repassava freneticamente – de arte a política, de como lavar as mãos a como não enlouquecer na quarentena, mais os “bom dia” com florezinhas e bichinhos – dado conjecturar que a maioria dos confinados passou por isso no mundo todo.
    Sucumbi à santa tecnologia, que tanto oferecia horas de distração para ela quanto nos permitia falar cara a cara pela chamada de vídeo. Essa era uma das situações mais engraçadas da nossa relação confinada, já que não havia filtro para assunto ou aparência e dávamos boas risadas com ambos.
Longe da tecnologia, mas tão útil quanto, mamãe lembrou de procurar no armário um antigo binóculo que eu dera a ela e papai para levarem aos concertos, balés ou óperas. Com seu tempo dividido entre as orações, os programas de televisão, o recebimento, leitura e repasse de mensagens, os telefonemas, a cozinha, as compras pelo telefone, ainda sobrava uns minutos para espiar os vizinhos pelo binóculo e driblar os momentos de tédio. Não os espiava todos os dias, o binóculo era uma alternativa para a sensação de que todos os dias eram iguais e ela só o fazia a noite, “para ninguém ver que estou na janela, né, filha”. Uma pequena transgressão permitida a quem estava presa em casa, pertencia ao grupo de maior risco e havia perdido há mais de dez anos o companheiro de plateia no teatro e de vida.
    Em duas ou três semanas de confinamento, tivemos o problema de as comidas caseiras feitas pela diarista dela acabarem. Como a rua também não era segura para a diarista que faz a limpeza e as várias comidinhas congeladas, ela pagou para a moça ficar em casa e não se expor ao risco. “Sem problemas, minha filha, vou cozinhar. Essas comidas congeladas que você compra para você não são saudáveis para mim”.
    Dessa decisão de cozinhar vieram as histórias mais engraçadas, as quais me deram alento durante a separação por saber que minha mãe tem bom humor, disposição física e mental e amigos incríveis. Ela teve que buscar na memória como fazer comida, pois já está há vinte anos com essa diarista, e ligar para a moça e amigos para perguntar do básico ao preparo de um molho diferente.
    Eu acompanhei praticamente o cozimento de todos os alimentos que ela preparou porque, ou falando por vídeo ou trocando mensagens, ela comentava que estava temperando o frango, fritando o peixe, fazendo o arroz ou o feijão ou cozinhando um legume. Isso rendia várias histórias, já que cozinhar requer atenção e ela não poderia ser interrompida pela máfia das velhinhas repassadoras de mensagens. Nas horas em que estava na cozinha, ela praguejava o WhatsApp apitando as novas mensagens sem parar. Obviamente ela alternou concentração com distração e coisas espetaculares aconteceram naquela cozinha.
    Acredito que todo mundo passou por períodos variando de “ok, isso é uma fase, a quarentena vai passar” a “que droga ficar trancada em casa só pensando em comida e lavando louça”. Com a mamãe não foi diferente, dado que o frango ficava sem gosto, o peixe grudava na frigideira, o arroz ficava sem sal, o feijão aguado e os legumes abandonados. Então ela me ligou furiosa um dia dizendo que queria passar uma semana em um hotel para não ter que cozinhar e lavar a louça. Ponderei que hotéis são caros, que talvez não a aceitassem sem acompanhante por causa da idade, que as refeições não estariam incluídas e que ela morreria de tédio. Ela argumentou que leria livros e trocaria mensagens com os duzentos e noventa e sete contatos de sua agenda. Mas rapidamente viu que seria caro demais para seu orçamento e que ler não era o seu forte.
    Fora isso, eu retruquei, quem me contaria as melhores histórias da quarentena? Quem mais tomou banho de farinha de trigo e ficou com duas “botas brancas” nos pés? Quem mais deixou o leite ferver a ponto de inundar o fogão? Quem mais descobriu açúcar espalhado na geladeira sem conceber como isso aconteceu? Quem iria me relatar a vida noturna dos vizinhos vista pelo binóculo? Quem me ligaria possessa de raiva dizendo que o mercado entregou abobrinha no lugar de abóbora? Quem colocaria caqui no molho achando que era um tomate? Quem me narraria a saga dos legumes abandonados?
Ela riu e concordou que cozinhar ajudava a passar o tempo e que era divertido ligar para os amigos para pedir receitas. Também admitiu que, tirando a saudade de ver as pessoas queridas e abraçá-las, não era tão ruim ficar em casa. Apesar de não estar caminhando na rua, ela fazia os exercícios que a fisioterapeuta do Pilates passava por vídeo “para não enferrujar”. Ela ainda aprendeu uma função nova do WhatsApp: gravar uma música cantada por ela e enviar para o grupo do Coral.
    Minha mãe, com quase noventa anos, deu uma lição de resiliência para todos que convivem com ela, reaprendeu a cozinhar, achou graça da situação, surtou um pouquinho, aprendeu coisas novas, deu uma rasteira no medo da morte e ainda rezou para um montão de gente.
    Um dia, escrevi no grupo da família achando que estava escrevendo para ela: “mamãe, como está o vai vem da cenoura?”. A pergunta fez chover Emojis de gargalhada e de espanto até eu explicar que, toda vez que eu ligava para ela no meio da manhã, ela estava cortando algum legume. Aí ela parava de cortá-lo para atender o telefone ou para ler ou responder ou repassar mensagens e o legume ficava lá na cozinha. Horas depois, ela perdia a vontade de preparar o legume e o guardava na geladeira. No dia seguinte, retirava-o para concluir a tarefa, que, se não fosse interrompida, terminava no segundo dia. Mas, se houvesse outro obstáculo, o legume seria preparado somente no terceiro dia. Assim, o vai e vem dos legumes poderia durar de um a três dias.

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    From the first paragraphs to the subject of the title, I suppose that my text represents a good number of people who live alone and who are not very close to the kitchen. That portion of human beings who remember the stove when they make coffee and clean it when the crumbs from toasted bread fall into the oven.
    Therefore, I suspect that, for beings without a kitchen concept, the beginning of isolation was, at the very least, strange and confusing as it was for me. I simply had no food and had no idea what a supply logistics was for lunch and dinner every day at home. So, on the first day of teleworking, March 17th, I went to three establishments: the common market to buy cleaning products and toilet paper (the most coveted items), the fresh fruit and vegetable store (the healthiest items) and the store of frozen foods (the substantial items).
    However, the isolation showed the need to stay at home for real and, until this pandemic, I had never made purchases of supplies over the internet. I searched the websites of the same establishments in the previous paragraph and had to deal with the anxiety of: receiving purchases in ten long days from the first establishment, praying to choose my fruits and vegetables well in the second and waiting for seventy-two hours of the delivery of the third. I learned the logistics of waiting and made purchases by calculating these anxieties. And delivery dates, of course.
    About the home office, I also don't think I'm going to tell you a lot of news. My computer crashed and the wi-fi failed a few times. I adapted myself to the new mode of video communication with several interlocutors at the same time. I have to say that I am over fifty years old and that new technologies are not exactly something that I master - or like. But that was okay, considering the supplies item. And, at the appointed time of the meeting, I endeavored to look at least minimally decent - hair up, a little powder to color my face, a lipstick and a smile of "okay, it will pass" to disguise the "I love being at home of slippers”.
    In my spare time, I tidied the house, washed the dishes, found some clothes with no buttons to fix or something broken to stick on. In the afternoon, after teleworking, I practiced yoga. And at night, I alternated between reading a book, sending and replying messages, or watching a movie.
    However, what concerned me most was not my food, my job or my leisure, but my eighty-six-year-old mother, who lives alone. I did not consider bringing it to my living room and bedroom for several reasons and the most striking thing is that the computer was in the living room, the same space as the television - which, in her house, is turned on at six in the morning to accompany the Catholic mass and in the late afternoon to see a popular tv show. See the photo how close are the tv and the computer.
    I talked a lot with her, explained the situation and talked a thousand times to stay at home, because I would do the shopping and take them to her. Initial resistance. Partial agreement. Another round of negotiations, until she is convinced that not only should she stay at home, but I should too. Soon, she kicked me out and bought her supplies from the nearby grocery store by phone.
    I breathed a sigh of relief until she said she would go to the cardiologist-geriatrician's appointment, since it was worse to be worried about not having her doctor's accompaniment among other thousand arguments. She took a taxi with a promise to return the same way she did.
    I waited for her to come back from the appointment to call me and tell me how it went, but, by my calculations, it was already taking a while. I chose not to panic, already imagining that I had returned on foot to chat on the street. Bingo!
- Mom, why did you take so long at this appointment?
- I had some bread and coffee on the way back.
- You have no sense at all!
- I had breakfast early and went to the doctor, I was hungry, hey.
- Couldn't you go straight back to your house and eat something?
- I stopped by the pharmacy to buy the drugs he prescribed.
- Did you go anywhere else? Did you expose yourself on the street, at the bakery and at the pharmacy?
- Hey, I had to buy the medicine.
    I mumbled that she shouldn't do this anymore so as not to expose herself on the street, and she replied:
- The bakery and pharmacy are on the same sidewalk as the doctor's office, I didn't even walk much.
    I had to laugh and ask:
- Ah, does it mean that the virus chose only one side of the sidewalk to infect people?
    Many laughs later, the matter was closed and, to my consolation, it never came out. However, I was intrigued by what she would do to pass the time, considering that she could not go to her weekly activities - Pilates and Choir - or anywhere else.
    A considerable portion of her day was spent reading the messages she received via WhatsApp from the weekly activity groups, the church group, the group of retired teachers, the old women who go on excursions, the group of the few remaining students who remained from the college time, family group, etc. And another amount of time was spent passing on these messages to me, to the family group, to different friends and so on. A real mafia of old women who pass on messages.
    The technology provided hours of distraction for her and allowed us to speak face to face over the video call. This was one of the funniest situations in our confined relationship, since there was no filter for subject or appearance and we had a good laugh with both.
    She decided to cook. "Those frozen foods you buy for yourself are not healthy for me," she said. From this decision to cook came the funniest stories, which gave me encouragement during the separation for knowing that my mother has a good mood, physical and mental disposition, and incredible friends. She had to learn how to make food, since she has been contracting for twenty years with a maid, who was at home too. My mother called her and friends to ask how to cook "from the basics to preparing a different sauce".
    I practically followed the cooking of all the foods she prepared because, either speaking on video or exchanging messages, she commented that she was seasoning the chicken, frying the fish, making the rice or beans, or cooking a vegetable. This yielded several stories, since cooking requires attention, and it could not be interrupted by the mafia of old women who pass on messages. In the hours when she was in the kitchen, she cursed WhatsApp by whistling the new messages over and over. Obviously, she alternated concentration with distraction and spectacular things happened in that kitchen.
    One day, I wrote in the family group thinking that I was writing to her: "Mom, how's the carrot coming?" The question rained Emojis with laughter and astonishment until I explained that every time I called her in the middle of the morning, she was cutting some vegetable. Then she would stop cutting it to answer the phone or to read or answer or forward messages and the vegetable would stay there in the kitchen. Hours later, she lost the desire to prepare the vegetable and kept it in the refrigerator. The next day, she took it out to complete the task, which, if not interrupted, ended on the second day. But, if there was another obstacle, the vegetable would only be prepared on the third day. Thus, the coming and going of the vegetables could last from one to three days.

 

 

 

 


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